Gilberto Arruda trabalhou seis anos como cobrador para custear os estudos. Ele se forma médico na UnB na próxima sexta-feira - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press) |
INSPIRAÇÃO
Por, Júlia Giusti
Morador do bairro Ceilândia, em Brasília
(Cidade Satélite do Distrito Federal), Gilberto Arruda Rodrigues, de 49 anos, faz
parte de uma família com seis irmãos. Desde cedo, foi incentivado em casa a
estudar, mas passou por dificuldades financeiras e perdeu os pais ainda jovem:
a mãe, com nove anos, e o pai, com 18. Ele conta que viu muitos amigos
"indo para outros caminhos, se envolvendo com a violência da região".
Gilberto pensou, na época: "Eu não quero isso para
mim. Quero outro estilo de vida". Então, focou na educação e teve
vários trabalhos para ajudar no sustento da família.
A
ocupação que mais marcou sua trajetória foi a de cobrador de ônibus, à qual se
dedicou por seis anos, desde os 18, por incentivo do pai — que era motorista de
transporte público. Gilberto, trabalhava para pagar o curso de educação física
que queria fazer na época, mas enxergava o ingresso na faculdade como uma
realidade distante. "Eu passava na UnB e pensava que isso aqui não era
para mim, pelo menos por enquanto, e para conseguir pagar uma faculdade
particular, teria que arrumar um emprego melhor", diz. E assim
buscou.
No
mesmo ramo, tentou ascender ao cargo de motorista, mas sofreu um acidente de
trabalho que interrompeu seus planos: durante o treinamento para o novo
emprego, em 2000, foi atropelado por um colega, o que lhe custou parte do
movimento das pernas. "Naquele momento, a esperança que eu tinha de
trabalhar e fazer faculdade acabou", lembra. Mas, no
fim, sua determinação o fez superar esse e outros desafios.
Gilberto
está concluindo o curso de medicina na Universidade de Brasília (UnB) e, depois
de seis anos de muita dedicação e perseverança, o estudante se forma na próxima
sexta-feira (24/5), mostrando que nunca é tarde para alcançar um sonho, que nem
sempre foi ser médico.
Registro da infância de Gilberto Arruda, com os seis irmãos e os pais(foto: Arquivo pessoal) |
Vocação
Após uma longa recuperação do acidente, que o
impossibilitou de andar por um ano, Gilberto deu a volta por cima. Se casou,
teve três filhos e, em 2013, concluiu o curso técnico de eletromecânica no
Instituto Federal de Brasília (IFB), área que sempre lhe chamou a atenção. Em
seguida, ele fez a prova do Enem para engenharia eletrônica e passou na Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). Ele aproveitou a oportunidade, mas sua
intuição o fez desistir do curso logo no início e voltar para Brasília.
Gilberto seguiu nos estudos, porque ainda queria
engenharia, mas começou a ter sinais de que deveria se tornar médico. "Eu recebi uma carta da Uniceplac para fazer medicina
com 50% de desconto pelo Fies, sem ter mandado nada para a faculdade
antes. Nos atendimentos para cuidar das minhas pernas, um enfermeiro e uma
técnica de enfermagem também me disseram que eu deveria seguir carreira na área
da saúde. Além disso, tive vários sonhos. Em um deles, meu médico disse que
seria meu professor de medicina. Quando acordei, pensei: não tem jeito, é
medicina mesmo", descreve.
Persistência
O formando expõe que voltar para Brasília foi a
melhor decisão, pois teve a oportunidade de estar perto dos filhos e
apoiar os estudos da companheira. Durante esse período, quando conciliava a
rotina da família com a preparação para passar em medicina, ele conta
que percebia uma defasagem em seus conhecimentos: "Quando
eu ia fazer as provas do vestibular, não entendia algumas coisas, porque não
tive matérias como química, física e biologia no ensino médio".
Assim, Gilberto teve que buscar outros métodos de estudo, por meio de cursos
on-line e estudando com a filha, que se preparava para entrar na escola
militar.
Em 2017, ele e a então esposa se separaram,
causando uma instabilidade na vida dele, mas houve uma surpresa: ele foi
aprovado para medicina pelo Enem. "Havia feito o Enem naquele ano, mas não
passei nas duas primeiras chamadas. Não ia olhar mais o resultado, porque, em
medicina, não tem tantas chamadas. Resolvi olhar por
incentivo da minha cunhada e, para minha surpresa, descobri que tinha passado
na UnB. Fiquei muito contente, pois ali seria um novo recomeço",
diz.
Durante os estudos, Gilberto se mudou para o Plano
Piloto (região central de Brasília), vendo a família com menos frequência, já
que moravam em Ceilândia. Apesar da distância, seus filhos o motivaram a não
desistir: "Quando dizia que estava muito difícil, meu
filho, de 10 anos, me falava para não desistir do meu sonho, e uma de
minhas filhas diz que quer ser médica, como eu". Mais tarde, a família
veio para o Plano também, facilitando os encontros.
No começo, ele relata que foi muito difícil, pois
acordava cedo para pegar o ônibus e se organizar para as aulas, mas a falta de
sono estava prejudicando o aprendizado: "Eu simplesmente não entendia o
que estava acontecendo na aula. Eu não memorizava nada, porque não estava
dormindo direito, então, ajustei o sono". Ele pensou em desistir várias
vezes, pela complexidade do curso, mas, a cada semestre que passava, ficava
mais confiante em seguir na formação.
Em certos momentos, Gilberto se sentiu invisível no
ambiente acadêmico e sofreu preconceito por sua cor de
pele e deficiência nas pernas, mas buscou forças junto aos professores e
amigos, seus maiores incentivadores na universidade. Para ele,
ficam os ensinamentos do pai de que não se deve fazer distinção entre as
pessoas, já que, por mais que "elas tenham os seus valores, a gente
não foi criado separando o branco do negro. Ele fazia amizade com todo mundo,
então, eu peguei isso dele".
No primeiro semestre do curso, como incentivo, um
de seus professores prometeu lhe dar um livro que os alunos precisavam adquirir
no quarto período do curso, para fazê-lo estudar até lá. Ele também relata que
se presenteava ao final dos semestres com algo que queria, "como forma de
reafirmar minhas conquistas".
O apoio da universidade também foi essencial para a
sua permanência, com auxílios em relação à alimentação, moradia e para compra
de equipamentos, como computadores, para desenvolver as atividades do curso.
Agora, ele vive na casa do estudante, moradia oferecida pela UnB a alunos em
vulnerabilidade socioeconômica. "Esse apoio foi muito importante na minha
caminhada e para minha permanência na universidade", frisa Gilberto,
referindo-se também à limitação física para se locomover.
Ex-Gilberto Arruda, cobrador de õnibus que irá se formar em medicina na UnB.15/05/2024 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press) |
Planos para o futuro
Gilberto pretende se especializar e passar em algum
concurso, "desempenhando uma carreira profissional satisfatória, fazendo
algo de bom pelos pacientes". Ele deseja seguir na área de medicina legal
ou de medicina familiar, vertentes que mais lhe chamaram a atenção durante a
graduação. O estudante considera que "se eu não
tivesse vivido todas essas dificuldades, talvez nem conseguiria descobrir o
potencial que estava dentro de mim". Ele também defende o olhar
positivo sobre a vida: "Nunca ache que as coisas são impossíveis e tenha
orgulho de si mesmo, porque, se você não tem, outras pessoas não vão ter".
Como mensagem final, ele diz que, assim como ele, existem vários "Gilbertos" pelo mundo, mostrando que é possível superar dificuldades e servir de inspiração aos outros. Ele fez uma analogia com a crise climática no Rio Grande do Sul, que causou alagamentos em mais de 80% das cidades gaúchas e atingiu mais de dois milhões de pessoas. Para ele, a rede de apoio em todo o país, com doações e ajuda financeira para a recuperação da tragédia, demonstra que "o Brasil é muito além das diferenças de religião, de raça, idade, gênero, cultura e nível socioeconômico", pois há uma coletividade que se mobiliza para ajudar. Assim foi com ele, que teve vários colegas na faculdade o incentivando a não desistir, independente de crenças pessoais. "O que as pessoas estão fazendo é um show de humanidade", contou Gilberto, emocionado.
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