Doutor é quem tem doutorado !

 

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Na legislação brasileira, não há nenhuma norma que determine que qualquer profissional sem título acadêmico seja chamado de doutor; para médica, tradição cria barreira.


Por Vinícius Lemos, BBC

Melania Amorim é ginecologista e obstetra. Um fato que faz parte da rotina da profissão a incomoda: o termo doutora, utilizado pelos pacientes que são atendidos por ela em um hospital público de Campina Grande (PB).

"Doutor é quem tem doutorado", diz ela — que tem doutorado —, à BBC News Brasil. Ela explica: "Ainda assim, é um título que deve ser usado somente no ambiente acadêmico".

Para ela, a palavra doutor carrega uma hierarquia que afasta médico e paciente. "Parece que o médico é sempre o detentor do saber, o todo poderoso, enquanto o paciente não sabe nada e vai se submeter passivamente àquelas orientações. Penso que isso não se admite mais na atualidade, em que a gente acredita em uma medicina baseada na humanização do cuidado", declara.


Logo no início das consultas, ela costuma explicar brevemente aos pacientes que não precisa ser chamada de doutora e pede que a chamem somente de Melania. "Os pacientes ficam meio atônitos quando toco nesse assunto e nem sempre entendem. Por isso, a gente tem que explicar com muito carinho e cuidado."

Nem sempre o pedido da profissional é atendido, pois, segundo ela, a tradição de utilizar o termo para denominar os médicos faz com que muitos pacientes não consigam.


"Eu não vou fazer uma confusão enorme com os pacientes, porque eles já vêm de determinada cultura, com determinados saberes populares. Se a pessoa continuar chamando de doutor, tudo bem. De todo modo, é importante fazer a defesa do fim do uso do doutor e explicar sobre o assunto para tentar construir uma nova cultura", declara a médica.


Ela conta que poucos médicos pedem para não ser chamados de doutores. "Eu diria que a minoria aderiu a isso, porque a maioria não participa dessa discussão, apesar de ser um tema meio antigo", afirma.


Melania admite que é um assunto polêmico e discutir sobre ele é arrumar problemas dentro da própria classe médica. Mas ela acredita que o número de profissionais que queiram deixar de ser "doutores" para os pacientes pode aumentar com o passar dos anos.


Outra área na qual é comum que os profissionais sejam chamados de doutores, mesmo sem doutorado, é o Direito. No segmento, também há profissionais que pedem para não ser chamados dessa forma, como a promotora de Justiça Maísa Oliveira, que atua na Defesa da Cidadania de Olinda (PE).


Maísa, cuja área de atuação tem contato direto com a população na busca por melhorias na prestação de serviços, afirma que tem uma relação conflitante com o fato de ser chamada de doutora. "Não sou doutora, porque não fiz doutorado. Mesmo que tivesse feito, não faria questão de ser chamada assim. Acho que o respeito pode ser expressado de outras formas, sem a utilização desse termo", diz.


No Brasil, em áreas como a Saúde e o Direito, outros diversos profissionais também são chamados de doutores — alguns, por preferência, até ostentam o título em cartões de visita ou nas redes sociais — e outros por hábito da população.

O tema desperta discussões. Especialistas afirmam que devido à tradição, não é errado chamar médicos e advogados de doutores. Porém, frisam que não pode haver imposição para o uso do termo, pois na legislação brasileira não há nenhuma norma que determine que qualquer profissional sem título de doutorado seja chamado de doutor.


Um dos principais argumentos para que os advogados sejam chamados de doutores é uma lei promulgada no Brasil há quase 200 anos. Porém, estudiosos questionam a validade desse decreto (entenda abaixo).

Principais entidades relacionadas a advogados e a médicos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) não possuem posicionamento oficial sobre o tema polêmico.


A origem do termo


O título de doutor foi formalizado por meio das primeiras universidades criadas no mundo, no fim do século XI, na Europa. Na época, o termo era relacionado a doutores em Teologia ou Filosofia, que eram os professores que, após estudos, eram considerados aptos a ensinar.

"Mais tarde, a Universidade de Bolonha (Itália), passa a formar também estudiosos do Direito Romano, que eram os legistas e recebiam o título de Doutor em Leis, que também passaram a ser professores. 

Eles ainda se tornaram funcionários nas cortes europeias para estudar e redigir leis e outros documentos importantes", explica a professora de História e pesquisadora Tania Bessone, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


A partir de então, o título de doutor passou a se popularizar em todo o mundo. No Brasil, se tornou muito comum por meio das primeiras escolas de Medicina, no início do século XIX. "Na época, os médicos defendiam uma tese ao fim do curso e recebiam o título de doutor. Esse hábito de chamar de doutor surgiu nesse período, inspirado nos modelos de faculdades de outros países", comenta Melania.


Assim como no Brasil, o costume de chamar médicos de doutores permanece em alguns países. Porém, Melania afirma que é importante frisar que há distinções nas formações acadêmicas. "Nos Estados Unidos, por exemplo, há um sistema diferente. Os estudantes fazem o college (iniciação ao ensino superior) antes do curso de Medicina. O médico, quando se forma, recebe o Medical Doctor (MD), que é um grau", ou seja vai além da graducação. explica.


E OS FORMADOS EM DIRETO (ADVOGADOS)


Já em relação aos advogados, Otávio Luiz Rodrigues, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirma que é incomum que as pessoas usem termos equivalentes ao doutor em outros países para identificar tais profissionais. "Eles são chamados de conselheiros, licenciados (que seria algo como bacharel em português) ou diretamente de advogados", detalha. 


O decreto de Dom Pedro 1º


No centro da discussão de advogados brasileiros que afirmam que devem ser chamados de doutores está um decreto assinado por Dom Pedro 1º em 1827. No documento, o então imperador definiu que aqueles que concluíssem os cursos de ciências jurídicas ou sociais no Brasil poderiam ser considerados doutores ( naquela época). 

Segundo Otávio Rodrigues, no entanto, o decreto não tem validade atualmente. "Não houve revogação expressa do decreto. Mas pelas legislações posteriores, que trataram de títulos acadêmicos, o título de doutor passou a ser concedido somente a pessoas que possuem doutorado."


"Eles não possuem prerrogativa para serem chamados assim. É apenas uma questão de tradição, de um costume linguístico que não foi abandonado por todos,  ainda", declara o professor de Direito.


 Até mesmo entre as instituições que representam as categorias. A OAB afirma que não há posicionamento do Conselho Federal da entidade sobre o tema.


Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) justifica que o "tratamento doutor com relação ao médico resulta de uma mera  tradição cultural". A entidade afirma que a decisão de chamar um médico de doutor depende do tipo de relação estabelecida entre o profissional e o paciente e "pode variar em função do grau de proximidade, do tempo de convívio e da diferença de idade" entre eles.


O CFM afirma que não há uma imposição para o uso do termo. "Tudo deve acontecer dentro de um ambiente de respeito e cordialidade", conclui nota encaminhada à BBC News Brasil, assinada pelo vice-presidente da entidade, Donizetti Giamberardino.


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Fonte : g1 Educação









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